Fonte: O Reencontro - Depois da Travessia
Autor: Everaldo Dantas da Nóbrega
Data: 23/10/2015
O REENCONTRO
― Depois da Travessia ―
Everaldo Dantas da Nóbrega
Há tempos não via meu velho amigo, o Poeta. Dias desses, encontrei-o. Pareceu-me mais jovem, fisicamente melhor, fortalecido interiormente. E com os olhos ― benditas janelas d’alma! ― mais vivos, mais brilhantes. Enfim, outro. Mudado para melhor. Mas, percebi, queria dizer-me algo ― como o meu, seu semblante não mente. E falou-me que o encontro não fora casual, ele o provocara. Necessitava conversar, desabafar. Assim, fomos pôr os assuntos em dia. E brindar ao reencontro, à amizade, à vida. Degustando excelente tinto ― o momento pedia! E ouvi sua história.
☼
O Poeta sempre navegara por mares calmos. Algumas vezes, como sói acontecer com qualquer navegante, havia tênues mudanças: pequenas avarias, as águas se agitavam, o tempo fechava-se ... ― coisas corriqueiras, nada demais. E logo tudo voltava ao normal, à saudável rotina.
Dessa maneira os dias transcorriam ensolarados, preenchidos, movimentados; as noites enluaradas, alegres, vividas; as madrugadas serenas, sono tranquilo, restaurador; e o despertar feliz, agradável, auspicioso, energizado. Vivia inspirado, produzindo seus poemas e outros títulos literários, desenhando, os afazeres em dia, a vida normal, intensa, tranquila. Nada indicava mar revolto, tempestades, caminhos tortuosos, rota perdida, descontrole.
Certo dia percebeu que estava à deriva. Em princípio pouca importância dera ao fato, mesmo procurando retomar o rumo. Mesmo assim ia tocando a vida. Então, uma correnteza o envolveu. E de maneira tal que terminou por consumiu-lhe as forças físicas e mentais, tirando-lhe qualquer oportunidade de contornar os problemas. Também, faltavam-lhe condições materiais e técnicas adequadas: o leme estava avariado, o motor falhava, o timão não governava, a bússola se descontrolara. Assim, viu-se totalmente perdido e sem rumo numa imensidão oceânica nunca dantes por ele navegada.
O que desencadeara isso tudo fora um acidente. Pelo menos aparentemente. É que de repente uma embarcação colidira com a sua. Depois do choque sentiu-se à deriva. Mas, pensando bem, tal fato fora somente a gota d'agua que faltava. Em verdade, já vinha sentindo sutis mudanças pois, vez por outra, o horizonte se tornava cinza, as manhãs nebulosas, as tardes difíceis, as noites insones, o acordar temeroso. Isso devido a problemas mal ou não resolvidos. Esses casos, aparentemente solucionados, repentinamente espocaram. E tudo veio à tona. Aí, o turbilhão. E o equilíbrio tornou-se quase impossível.
O primeiro ano nessa situação foi o do desencadeamento do problema. E do arrasto pela imprevisível, forte e sinuosa correnteza. Com isso, cada vez mais o Poeta era levado para águas desconhecidas e perigosas, debalde seus esforços. Nesse ínterim, aportou em alguns estaleiros e em pequenas, porém acolhedoras ilhas, recebendo ajuda. Mas as providências tomadas não eram suficientes. E, novamente em curso, era envolvido pela correnteza, em novo arrasto. Mas lutava, já que a jornada tinha de continuar, custasse o que custasse.
No segundo ano foi colhido por um redemoinho. Desses gigantes. O abalo foi grande, quase indo a pique. Salvou-se por pouco. E com muita luta conseguiu sair do voraz torvelinho. Mas aí o caso tornou-se mais complicado, pois com avarias adicionais. Por isso tinha que procurar outras alternativas. E lutou, lutou, lutou. Então, orientado por uma estrela guia e apoiado por outra de especial grandeza, terminou por aportar numa grande ilha.
Na Ilha da Esperança, onde aportara, havia excelente estaleiro e ótimos profissionais nas especialidades que necessitava. Mesmo assim o Poeta optou por também receber cuidados de especialistas de fora. Todos esses ― diferentemente de alguns d'outras plagas ― afirmaram que o problema tinha solução. E definitiva! Então, dentro dessa nova perspectiva foi à luta com mais ânimo, maior disposição.
Durante sua estadia nessa grande Ilha inteirou-se de muitas coisas inerentes à situação. Lá encontrou outros necessitando da mesma ajuda, com embarcações idênticas à sua. E outras de menor e maior envergadura, muitas delas mais sofisticadas. Diante disso conscientizou-se que não era privilégio seu ter problemas da espécie. Então deixou de se perguntar lastimosamente porque aquilo havia acontecido logo com ele. E passou a encarar o fato por outra perspectiva.
Com os companheiros de infortúnio e praticamente ilhado do resto do mundo, o ele foi atendido por profissionais da área, assistiu a palestras, estudou o caso a fundo e aprendeu técnicas de como evitar tais complicações. Ainda, seguindo a máxima da mens sana in corpore sano, não descuidou de uma alimentação adequada, de exercitar-se física e mentalmente, ter seu lazer, dormir e acordar nos momentos certos. De quebra, estimulado por alguns colegas, deu mais atenção à vida espiritual. Isso tudo era ― como foi ― necessário para êxito do processo, inclusive para voltar a ser um comandante são de corpo e alma. Disciplinado como sempre foi, seguiu à risca tudo o que lhe foi sugerido, orientado, determinado. E dois meses depois retornava aos mares para o percurso de volta, pela mesma rota ― era assim que devia ser ―, mas em condições menos dolorosas, mais amenas.
Nesse período todo o Sol foi-lhe presença intensa, constante e benéfica, energizando-o, dando-lhe forças. A Lua, que antes lhe inspirara poemas e contos, mesmo à distância brindou-o com luares amenos e serenos, alegrando-o, estimulando-o a vencer a batalha - se não fez mais foi porque os horizontes cinzas não lhe permitiram. Estrelas, isoladas ou em constelações, algumas até então quase imperceptíveis nos céus da sua jornada, marcaram presença e enviaram-lhe luzes nos seus respectivos graus de intensidade, ajudando-o dando-lhe forças, conforto, acalentando-o. Todos também lhe serviram como guia, norteando-lhe os caminhos, as direções, vez que sua bússola estava avariada.
O terceiro ano foi o dessa volta pelos mares agora já antes navegados. Obviamente que sem descuidar-se dos reparos adicionais, da manutenção, da aplicação do que estudara e aprendera na Ilha da Esperança. Esse retorno também não foi fácil. Teve que se recuperar gradativamente, num processo lento, incômodo, doloroso. Mas o difícil mesmo fora o primeiro passo. Então, essa outra fase também poderia ser superada com a mesma perseverança e determinação.
Nesse diapasão, quando do seu desembarque pôde sentir-se revigorado física e mentalmente. E voltar a ser o que antes fora. Só que agora melhorado. Como a Águia depois do seu processo de renovação.
Já no seu status quo ante, mas agora intrinsecamente mais completo, o Poeta entendia ― como entende ― que não devia, em circunstância alguma, entregar-se à sorte do destino. Nem se lastimar quando em situações adversas, por mais difíceis que elas possam ser, mas, contrariamente, tocar a vida. Nem aceitar que outros se lastimem por ele. Nem no seu derradeiro instante terreno pois, apesar dos pesares ― e até por eles ―, a vida vale a pena ser vivida. E como vale! E com certeza foi nessa linha de pensamento que compôs os versos do seu mais recente poema, "Música, Maestro! :
Quando um dia eu partir
Deste para outro plano
Não quero ninguém a carpir
Só acordes de piano!
Seu semblante espelhava isso, essa ideia que na batalha não se chora, se luta. E que o vencedor ou perdedor não deve ser chorado nem lastimado, simplesmente aplaudido! Nunca, nem mesmo na sua partida!
☼
Foi o que ouvi e senti do meu velho ... melhor dizendo, do meu novo ― porque agora renovado ― amigo, o Poeta.
Agora quando nos encontramos, além de brindarmos aos reencontros, à amizade e à vida, também brindamos a essa travessia exitosa, por mais dolorosa que tenha sido. E cientes que as dificuldades ajudam a forjar melhor o gênero humano!
João Pessoa, Paraíba, 23 de outubro de 2015
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